no dia primeiro, no nono andar: HERMES | LAMB São Paulo

1 April - 17 May 2019

SALA DE ACONTECIMENTOS

Nos olhos de quem vê

Ainda hoje um conjunto de regras a respeito da arte, noções que a princípio distinguiriam o que é arte do que não é, podem ser uma pedra no caminho do receptor de arte contemporânea. Um imaginário onde reinam conceitos como exclusividade, inspiração, destreza, entre outros, características com as quais a arte atual veio romper, ainda confunde e distância o público dos trabalhos que não se encaixam nestas premissas. 

Talvez valha a pena retroceder no tempo e pensar em Duchamp, que preconiza a ideia de que a obra estava no olhar do espectador e não em uma visão fechada proposta pelo artista. Desde Duchamp a distinção entre o que é ou não é arte perdeu sua importância, visto que essa “diferença” passa a ser produzida pelo referencial de observação. Tal ideia vai refletir em diversos trabalhos artísticos onde se radicaliza a questão da recepção. Por isso gostaria de relembrar aqui este momento de efervescência posto em prática a partir da década de 60 em que proposições artísticas deram maior autonomia à recepção, transformando-a de fato em coautoria. 

Foram tantas as experiências. "Os móbiles de Calder, os espetáculos coletivos do Living Theatre, os happenings do grupo Fluxus, as instalações e ambientes imaginados por artistas como Donald Judd, Richard Serra ou Robert Morris, os bichos de Lygia Clark, os parangolés de Hélio Oiticica são apenas alguns exemplos, dentre milhares de outros, de obras que pressupõem a intervenção ativa do espectador” 1

Happenings

Mas dentre tantos artistas, destaco aqui o papel de Allan Kaprow. A autoria do termo e do gênero artístico happening é creditada ao artista devido ao seu trabalho 18 happenings in 6 parts, realizado no outono de 1959 na Reuben Gallery em Nova Iorque. Aparentemente, aquela foi uma oportunidade de mostrar em âmbito público o que já acontecia para uma audiência composta por amigos e conhecidos nos ateliês e residências de artistas. “Decidindo que era hora de ‘aumentar a responsabilidade do espectador’, Kaprow colocou em seus convites a regra ‘você fará parte dos happenings; você simultaneamente irá experimentá-los’” 2

Kaprow fazia parte de uma época onde a valorização de gestos e objetos comuns era crescente em diversos campos artísticos. Aqui está um trecho escrito a seis mãos feito por ele, Robert Watts e George Brecht, na criação de um projeto que jamais veio à tona – Project in Multiple Dimensions –, mas que revela qual direção a arte tomava àquela altura: 

“em todas as artes, somos tomados por um afrouxamento geral das formas que no passado eram relativamente fechadas, estritas, e objetivas, a formas que são mais pessoais, livres, aleatórias. E abertas, frequentemente sugerindo em seus formatos aparentemente ocasionais uma mutabilidade e ausência de limites infinitos. Na música, conduziu ao uso do que uma vez foi considerado ruído; na pintura e na escultura, aos materiais que pertencem à indústria e à lata de lixo; na dança, aos movimentos que não são “graciosos”, mas que, não obstante, vêm da ação humana. Está ocorrendo um alargamento gradual do espaço da imaginação, e os povos criativos estão abrangendo em seu trabalho o que jamais fora considerado arte” 3

Kaprow moveu-se de um trabalho com pintura ao estilo Expressionista abstrato da época para a chamada action collage, uma tradução daquela pintura com o uso de objetos geralmente banais. Em seguida ele trabalha com environments. Tais trabalhos mobilizam outros sentidos que não apenas a visão: som, cheiro, tato. Ele trabalhava com a edição sons e frequentou o curso de composição experimental ministrado por John Cage do qual surgiram alguns integrantes pioneiros do Fluxus. 

Da ideia de environment, ele parte para esta espécie de teatro ao estilo de uma colagem, batizado de happening. Neste ponto seus trabalhos passam a contemplar a recepção e a relação com os espaços. Depois de 18 happening in 6 parts, uma série de eventos parecidos passaram a ser exibidos nas galerias. Profundamente atento ao sistema da arte, Kaprow propôs trabalhos que escapavam ao circuito oficial e podiam acontecer em diferentes cidades ao mesmo tempo, ou sem data marcada. Eat (1964) em uma cervejaria abandonada, Tree (1963) na criação de galinhas de George Segal, Calling (1965) envolvia passear de carro por Nova Iorque com passageiros enrolados em papel alumínio, Moving (1967) aconteceu em vários 16 apartamentos e nas ruas, Self-Service(1966) aconteceu simultaneamente por um período de 4 meses em Boston, Nova Iorque e Los Angeles; Fluids (1967) envolvia a construção de pequenos edifícios compostos por blocos de gelo em 15 lugares diferentes da cidade de Los Angeles e ainda Soap (1965) que foi subsidiada pela Universidade da Florida e foi “não-performada”. 

Todas estas ações dependeram da participação de pessoas, algumas delas só existem sob a forma de relato, algumas foram documentadas através de fotografias. Allan Kaprow não estava interessado em produzir obras para museus, já na década de 90 foi convidado a expor algum trabalho na galeria Grace Zabriskie em Nova Iorque e sua proposição foi trabalhar para a galerista como seu assistente por uma semana, atendendo ao telefone, trazendo café ou varrendo o chão. 4

Sala de acontecimentos

Talvez seja desejável relembrar a efervescência dos anos 1960, porque 2019 tem sido assustadoramente retrógrado. Talvez porque seja preciso relembrar que os limites da arte foram expandidos e não precisamos nos manter presos à padrões que não funcionam mais.

O Hermes Artes Visuais sendo uma organização dirigida por artistas e voltada para a orientação de processos de jovens artistas procura estimular a dimensão experimental da arte e a pensar criticamente os formatos dados. Seja abandonando o modelo tradicional da sala de aula, onde o professor emite e os alunos são receptores das informações – seus encontros ocorrem de modo horizontal ao redor da mesa onde todos trocam informações. Seja valorizando as experiências pessoais de cada artista, referências da história da arte compartilhadas e o estímulo ao espírito de solidariedade entre os participantes como seus principais meios de difusão do conhecimento em artes visuais. 

Somado aos momentos de discussão, o Hermes Artes Visuais mantém um programa contínuo de exposições experimentais onde os participantes são convidados a produzir exibições de arte contemporânea passando por todas as suas etapas. "no dia primeiro, no nono andar” vem a integrar essa lista de exposições experimentais. Um momento em que os participantes são instados a partir para a ação após a sucessão de encontros e trocas fazendo com que todo o caminho percorrido possa desaguar na prática. 

Somos artistas traçando uma curadoria para outros artistas e por isso ao invés de fazermos um recorte formal ou temático, como cabe aos curadores, nos demos a liberdade de lançar proposições aos participantes do Hermes. O convite que fizemos envolvia criar trabalhos que pudessem acontecer em um mobiliário típico de espaços de arquivo, com mapotecas, armários e estantes.

O visitante então também ganharia seu papel abrindo gavetas e arquivos suspensos, decidindo seu percurso dentro deste arquivo disfuncional que abrigaria a volumosa produção dos 48 artistas que passam pelas atividades de orientação crítica do Hermes. Cada um, portanto verá e experimentará o espaço a seu próprio modo. Como escreveu Arthur Danto a respeito do grupo Fluxus: “a questão não é quais são as obras de arte, mas qual é a nossa percepção de algo se o vemos como arte” 5

Que a exposição então se torne uma "Sala de Acontecimentos". Ecoando nossos encontros que acontecem em uma sala, transformando a galeria não apenas em um espaço expositivo, mas de experiências e reafirmando a ideia de processo, de pensar a arte não apenas como a confecção de um objeto, mas um contínuo desdobrar-se a partir dessas trocas mútuas que acontecem nessas salas.


Marcelo Amorim


1 .MACHADO, Arlindo .1997. Hipermídia: o Labirinto como Metáfora. In: Diana Domingues. (Org.). A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Ed. da Unesp.

2 .GOLDBERG, RoseLee. 2001. Performance Art: From Futurism to the Present. Londres, Thames & Hudson, col. World of Art (traduçao brasileira A arte da Performance SP, Martins Fontes, 2006, trad. de Jefferson Luiz Camargo, supervisão de Kátia Canton).

3 RODENBECK, Judith, Life Like Art, Artforum, (setembro, 2006)
4 RODENBECK, Judith, Life Like Art, Artforum, (setembro, 2006)
5 DANTO, Arthur C. ,2003. O mundo como armazém. In: O quê é Fluxus? O que não é! O porquê. CCBB. Rio de Janeiro